O Baú dos Papelinhos de Dona Inácia, Prazeira de Manica
de: José Mora Ramos
Sinopse
O Baú dos Papelinhos de Dona Inácia, Prazeira de Manica é uma revisitação ficcionada da fase final do colonialismo português em Moçambique, através da construção da vida de Inácia, mulher determinada, independente, corajosa, leitora obsessiva de tudo o que podia, assim minimizando o isolamento do mundo em que a colónia vivia.
Inácia, mulher muito à frente do seu tempo, nunca poderia ter existido naquele Moçambique, naquele tempo, mas se o pudesse teria sido como a neta, Carolina, a imaginou, ao narrar a sua vida a partir do acervo dos escritos em papelinhos soltos, deitados pela avó, ao longo de cinquenta anos, para dentro do baú de chanfuta.
Chegada a Lourenço Marques em 1926, para casar por fotografia, assim procurando fugir à miséria e à vida sem horizontes a que em Portugal estava destinada, Inácia vive os primeiros anos na capital, depois no Xai-Xai, mais tarde em Manica, onde se torna dona de uma farme e ganha o título de Prazeira de Manica, regressando ao pais onde nascera, mas que deixara de ser o seu, em 1975.
Foi ao ler de um fôlego a imensidão de papelinhos do baú que Carolina percebeu o fulgor, o brilho dos olhos verdes de avó, nas raríssimas ocasiões em que falava de Moçambique, das suas praias sublimes, das suas montanhas místicas, da serenidade única dos seus fins de tarde, pincelados de infinitos vermelhos, como vermelha era a cor da terra das suas pradarias. Foi então que percebeu o sorriso travesso que lhe aflorava aos lábios quando dizia que vivera entre dois mundos, o mundo dos colonos, de um lado, do outro o mundo dos povos daquele país, dotados de múltiplas crenças e de um imaginário mágico, inesgotável, sua identidade e essência.
– Patroa, estás a falar com os milho?
Inácia, agachada, mãos enfiadas no solo, concentrada nos seus sussurros, assustou-se.
– Desculpa, senhora, assustei-lhe?
– Não faz mal Julião, sim, estava a falar com o milho.
– Milho entende os português?
Inácia sorriu.
– Julião também fala com os milho, nos nossa língua.
– Julião, o milho fala todas as línguas.